Descendente direta dos Baobás africanos, da família de nome científico Adansonia Digitata.
Um dia, muito pequena, na
pré-escola, teve um forte impulso de soltar o cabelo. O fez e saiu alegre e
faceira, balançando suas madeixas. Em questão de segundos, veio uma professora
horrorizada, gritando, e o amarrou rapidamente. Aquilo a marcou profundamente e
assim manteve suas raízes: presas. Muitos anos e muitas tentativas de alisamento
depois, já gente grande, pediram que soltasse seu cabelo. O black power
ainda não era moda e negro não era assim tão lindo aos olhos preconceituosos da
maioria. Foi um pouco dolorido, mas assim o fez, afinal, queria nascer,
ansiava por uma retomada da escuta de seus impulsos mais recônditos, por uma
consciência orgânica, e estava pagando um preço alto por esse ritual de
iniciação... por esse retorno a si própria. Chorou cinco dias até nascer. Mas
ao mesmo tempo que chorava ria. E se contorcia até virar do avesso. E quanto
mais se contorcia, mais riam dela. Até aquele momento nunca imaginou, nem por
um segundo, que pudesse ser engraçada, que pudesse fazer alguém rir. Demorou,
deu trabalho, ficou um tempo que nem molusco que abandona a carcaça, ou como diz
Clarice Lispector, que nem quando pingam limão na ostra viva. Mas depois disso,
ninguém mais a prendia. Se desescolarizou. Se desautomatizou. Desaprendeu.
Transbordou. Atravessou um portal para outra forma de existência.
O ser
humano pode nos deixar cada vez mais perplexos com sua grande capacidade de
ser... humano! Através da palhaça, nesse exercício de liberdade indescritível,
Bafuda brincou de perto com crianças, homens, mulheres, adolescentes, velhos,
bêbados, loucos, doentes; olhos nos olhos, corpos que dançavam, exaltando o
prazer, em abraços que quebravam barreiras e preconceitos e colocavam todos
juntos, iguais, em troca amorosa, numa celebração sem fim da vida.
Foi esse
olhar que a levou de volta ao sentido que buscava no teatro e na vida. Foi o
primeiro vôo rumo ao entendimento de que tudo é DANÇA, chave essencial em sua
visão criadora.
Bafuda (Felícia de Castro) foto Eduardo Ravi - 25 anos do Circo Picolino (2010) |
[Bafuda me ensinou
muito. Pude expor de volta, um lado bravo, para além do doce e meigo. Foi uma
excelente via de explorar a agressividade, as energias masculinas, e qualidades
animais, ambas vinculadas à expressão do grotesco. Penso que o revelar dessas
qualidades, naquele momento, correspondia à criança dinâmica, ativa, brava, que
eu era na infância. Essas vivências levaram ao desenvolvimento do grotesco que
tornaram-se um elemento importante também para o acesso de outras vias
musculares, para “cavar” mais por dentro. Essas vivências intensas serviram
para quebrar velhas cascas cristalizadas e libertar novamente a “criança atômica”
(apelido de infância dado por meu avô) que fui um dia. Acredito, baseada na
observação de minha experiência pessoal e na observação de inúmeros alunos, que
o refazer do contato com a infância é, também, uma premissa e uma conseqüência
da arte do palhaço. A descoberta e desenvolvimento crescente do palhaço foi cada vez mais verticalizada, e levou a uma peculiar forma de soltar a voz;
porque era impossível fazer palhaço sem estar profundamente ancorada no contato
íntimo comigo mesma, com o tempo presente, com os sentimentos do momento.
Escolhi não me apoiar na fala porque o que me comove no palhaço é,
principalmente, a beleza do diálogo físico dotado de um coração e de um “olhar
que derrama”. Mas essa escolha inclui sons. A poesia é das ações, e a voz, inseparável
do corpo, é ação. Dessa forma, soltei a voz em choros, grunhidos e línguas
inventadas, e fui surpreendida por vibrações pessoais, ventos de vozes de
dimensões longínquas e desconhecidas. Ao realizar essa reflexão sobre os
elementos conquistados através da arte do palhaço, chego à compreensão do
porque de ter feito essa escolha de forma tão radical. O grande ganho foi
reintegrar-me em uma totalidade orgânica. Entendo a ausência total de
dúvidas quando decidi interromper por alguns anos todas as outras formas de
fazer teatro para desenvolver meu palhaço pessoal. Havia uma grande paixão por
essa linguagem e por como ela era articulada nas pesquisas do Lume Teatro. Essa
prática me virou do avesso como atriz, tornando-me mais corajosa, e
revolucionando, inclusive, a qualidade da minha relação com o espectador. Esse
fazer me permitiu entrar em contato com outras técnicas e experiências cênicas,
e representou um excelente pretexto para enveredar-me na desejada pesquisa da
arte do ator. Percebo que, quando comecei a juntar meus pedaços e a me sentir
inteira, descobrir-me, aceitar-me, calei-me um tempo para ouvir os sussurros
daquele novo ser. Permaneci em mim para escutar. Era tudo muito novo. O susto
de já ser outra. A liberdade de não ser mais aquela. Continuei dançando. E,
então, desse silêncio, fez-se o canto. (trecho do capítulo PALHAÇO:
BASES DO CAMINHO DE CORPORIFICAR A VOZ E O CORAÇÃO, parte da pesquisa de mestrado
intitulada Ventos que Animam a
Terra - voz e criação na trajetória do espetáculo Rosário)]
Bafuda é Felícia
de Castro. Ou Felícia de Castro é Bafuda. Graduada em Artes Cênicas na Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e Mestra pelo Programa de Pós Graduação em Artes
Cênicas da UFBA. Atua desde 1998 como atriz, palhaça, criadora e pesquisadora
das potencialidades pessoais e dramaturgia do performer, ancorada no contato com as linhas de pesquisa em voz, exaustão, criação e palhaço,
transmitidas pelo Lume Teatro de 1999 a 2005, em vivências com manifestações
culturais brasileiras como a Capoeira Angola (BA), o Samba de Roda (BA), o Congado Mineiro, e o
Reisado de Congo (CE), e no encontro com a dança Butoh através do mestre
japonês Tadashi Endo, em 2006.
Junto com outros palhaços de sua geração, é uma das precursoras da retomada da arte do palhaço em Salvador, desde que produziu o VIII Retiro de Clown e O Sentido Cômico do Corpo, e a partir daí realizou uma formação intensiva na área da palhaçaria. Em 1999, produziu junto com João Lima a vinda do Lume Teatro para Salvador. O grupo Lume realizou na cidade espetáculos e um curso de formação de palhaço que iniciou dezessete artistas baianos na arte do palhaço, tendo sido assim responsável pelo fortalecimento dessa arte na cidade, através dos palhaços que se desenvolveram e seguiram formando outros artistas na profissão de palhaço. Com João Lima, Demian Reis, Flavia Marco Antonio e João Porto Dias, foi fundadora, no ano 2000, do grupo de teatro Palhaços para Sempre. Em seus dez anos de trajetória, o grupo consolidou-se através da pesquisa da arte do palhaço e criou diversos espetáculos, entre eles BAFO DE AMOR (João Lima e Felícia de Castro), e JARDIM (prêmio duplo de melhor atriz para Felícia de Castro e Flavia Marco Antonio no XII Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga-CE em 2005). Felícia de Castro criou em Salvador, em 2008, juntamente com Demian reis, João Lima e Alexandre Casali, o primeiro curso técnico profissionalizante em palhaçaria da Bahia, em parceria com a Sitorne – estúdio de artes cênicas. Em 2009, realizou a 1ª Edição do Palhaças, bem vindas sois vós - Estudo Prático da Comicidade Feminina. Neste mesmo ano, participou como palestrante convidada, ao lado de Lelo Filho (A Bofetada - BA) e Pepe Nuñes (Cia Pé de Vento – Espanha/SC) do Pensamento Giratório, em debate intitulado “O Riso, a maneira mais inteligente de se tratar as coisas sérias”, atividade integrante do projeto Palco Giratório do SESC. Entre inúmeros alunos e alunas, em 2008, iniciou os dançarinos do Balé do Teatro Castro Alves (BTCA) na arte do palhaço, ocasião em que foi assistente de direção e co-criadora de espetáculo da mesma companhia, dirigido por Nehle Franke. Tem ministrado inúmeras formações/iniciações na arte do palhaço e cursos abordando os temas de suas pesquisas em diversas instituições.
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