21 outubro, 2012

O JORNAL RELOADED



O Jornal. Há pelo menos oito anos faço esse número. O mesmo papel, a branca. A mesma partitura. Não tinha pensado nisso, mas tem coisas que nos acompanham durante a vida e crescem com a gente. Gosto dessa relação com o teatro. Começamos fazendo uma versão clássica, na época do espetáculo “A Era Clown – É Tempo de Palhaço!” (2003 ou 2004?), porém já renovada com os nossos estilos da época, com nossas ações e reações que vinham sendo repertoriadas durante cinco anos, com a direção de Alexandre Casali, e com a co-criação de todos os palhaços do elenco. No início e durante muito tempo fazia junto com Flavia Marco Antonio (Fuinha) e Carol Almeida (JouJou), era incrível, e um início da palhaçaria feminina em Salvador. Um número só com mulheres? Praticamente não existia isso... Porque não havia muitas palhaças mesmo... Depois com o afastamento de Flavia e Carol, fiz muitas vezes com Demian, João Lima, Xande, Elaine Cardim. Maravilhoso também! Sempre novas leituras, novas descobertas, novas brigas, novos encontros... Sempre lapidação da partitura. Mas sempre dentro da estética clássica. A qual adoro e respeito. Satisfação imensa em renová-lo agora com uma versão moderna, pop, mega feminina, e um tanto quanto erótica, porém mantendo, salvo pequenas mudanças de acordo com a reedição, a mesma partitura. É a satisfação com a infinitude criativa da palhaçaria, sempre plena de possibilidades de renovação, de novas leituras, através de nossas impressões pessoais e atualizações de nossas reflexões e momentos de vida. Alegria em compartilhar esse momento mais uma vez com meu “para sempre” parceiro Demian Reis, e com Priscila Sodré e Stephanie. Êa Cabaré do Riso! Gratidão.


Fuinha (Flavia Marco Antonio), Joujou (Carol Almeida) e Bafuda (Felícia de Castro)
2004



Tezo (Demian Reis), Biancorino (Alexandre Casali) e Bafuda (Felícia de Castro)
2010 foto Rafael Martins

Priscila Sodré e Felícia de Castro
2012 foto Nelson Aguiar

Priscila Sodré e Felícia de Castro
2012 foto Nelson Aguiar

Stephanie Ferreti e Felícia de Castro
2012 foto Nelson Aguiar

Stephanie Ferreti, Priscila Sodré e Felícia de Castro
2012 foto Nelson Aguiar
O “Cabaré do Riso" é um sitio de experimentações e apresentações cênicas de 
Palhaçaria dirigido por Demian Reis com o objetivo de instigar, fomentar e disseminar a cena do riso e do humor na cidade de Salvador. A intenção é dar continuidade à tradição e à renovação da palhaçaria que vem se estabelecendo com uma presença cada vez mais visível a partir do início deste século no mundo e na nossa cidade.
Em outubro no Teatro Gamboa Nova ainda restam os dias 24 e 31 de outubro, 20h.
Ingressos: R$20 inteira R$10 meia.
Classificação: 14 anos.
Anota na agenda!!!"

05 outubro, 2012

Bafuda Florência Orgância Risoflora Caipora Copaíba de Manjericão Árvore

Descendente direta dos Baobás africanos, da família de nome científico Adansonia Digitata.


Um dia, muito pequena, na pré-escola, teve um forte impulso de soltar o cabelo. O fez e saiu alegre e faceira, balançando suas madeixas. Em questão de segundos, veio uma professora horrorizada, gritando, e o amarrou rapidamente. Aquilo a marcou profundamente e assim manteve suas raízes: presas. Muitos anos e muitas tentativas de alisamento depois, já gente grande, pediram que soltasse seu cabelo. O black power ainda não era moda e negro não era assim tão lindo aos olhos preconceituosos da maioria. Foi um pouco dolorido, mas assim o fez, afinal, queria nascer, ansiava por uma retomada da escuta de seus impulsos mais recônditos, por uma consciência orgânica, e estava pagando um preço alto por esse ritual de iniciação... por esse retorno a si própria. Chorou cinco dias até nascer. Mas ao mesmo tempo que chorava ria. E se contorcia até virar do avesso. E quanto mais se contorcia, mais riam dela. Até aquele momento nunca imaginou, nem por um segundo, que pudesse ser engraçada, que pudesse fazer alguém rir. Demorou, deu trabalho, ficou um tempo que nem molusco que abandona a carcaça, ou como diz Clarice Lispector, que nem quando pingam limão na ostra viva. Mas depois disso, ninguém mais a prendia. Se desescolarizou. Se desautomatizou. Desaprendeu. Transbordou. Atravessou um portal para outra forma de existência.

O ser humano pode nos deixar cada vez mais perplexos com sua grande capacidade de ser... humano! Através da palhaça, nesse exercício de liberdade indescritível, Bafuda brincou de perto com crianças, homens, mulheres, adolescentes, velhos, bêbados, loucos, doentes; olhos nos olhos, corpos que dançavam, exaltando o prazer, em abraços que quebravam barreiras e preconceitos e colocavam todos juntos, iguais, em troca amorosa, numa celebração sem fim da vida.


Foi esse olhar que a levou de volta ao sentido que buscava no teatro e na vida. Foi o primeiro vôo rumo ao entendimento de que tudo é DANÇA, chave essencial em sua visão criadora.

Bafuda (Felícia de Castro) foto Eduardo Ravi - 25 anos do Circo Picolino (2010)

[Bafuda me ensinou muito. Pude expor de volta, um lado bravo, para além do doce e meigo. Foi uma excelente via de explorar a agressividade, as energias masculinas, e qualidades animais, ambas vinculadas à expressão do grotesco. Penso que o revelar dessas qualidades, naquele momento, correspondia à criança dinâmica, ativa, brava, que eu era na infância. Essas vivências levaram ao desenvolvimento do grotesco que tornaram-se um elemento importante também para o acesso de outras vias musculares, para “cavar” mais por dentro. Essas vivências intensas serviram para quebrar velhas cascas cristalizadas e libertar novamente a “criança atômica” (apelido de infância dado por meu avô) que fui um dia. Acredito, baseada na observação de minha experiência pessoal e na observação de inúmeros alunos, que o refazer do contato com a infância é, também, uma premissa e uma conseqüência da arte do palhaço. A descoberta e desenvolvimento crescente do palhaço foi cada vez mais verticalizada, e levou a uma peculiar forma de soltar a voz; porque era impossível fazer palhaço sem estar profundamente ancorada no contato íntimo comigo mesma, com o tempo presente, com os sentimentos do momento. Escolhi não me apoiar na fala porque o que me comove no palhaço é, principalmente, a beleza do diálogo físico dotado de um coração e de um “olhar que derrama”. Mas essa escolha inclui sons. A poesia é das ações, e a voz, inseparável do corpo, é ação. Dessa forma, soltei a voz em choros, grunhidos e línguas inventadas, e fui surpreendida por vibrações pessoais, ventos de vozes de dimensões longínquas e desconhecidas. Ao realizar essa reflexão sobre os elementos conquistados através da arte do palhaço, chego à compreensão do porque de ter feito essa escolha de forma tão radical. O grande ganho foi reintegrar-me em uma totalidade orgânica.  Entendo a ausência total de dúvidas quando decidi interromper por alguns anos todas as outras formas de fazer teatro para desenvolver meu palhaço pessoal. Havia uma grande paixão por essa linguagem e por como ela era articulada nas pesquisas do Lume Teatro. Essa prática me virou do avesso como atriz, tornando-me mais corajosa, e revolucionando, inclusive, a qualidade da minha relação com o espectador. Esse fazer me permitiu entrar em contato com outras técnicas e experiências cênicas, e representou um excelente pretexto para enveredar-me na desejada pesquisa da arte do ator. Percebo que, quando comecei a juntar meus pedaços e a me sentir inteira, descobrir-me, aceitar-me, calei-me um tempo para ouvir os sussurros daquele novo ser. Permaneci em mim para escutar. Era tudo muito novo. O susto de já ser outra. A liberdade de não ser mais aquela. Continuei dançando. E, então, desse silêncio, fez-se o canto. (trecho do capítulo PALHAÇO: BASES DO CAMINHO DE CORPORIFICAR A VOZ E O CORAÇÃO, parte da pesquisa de mestrado intitulada Ventos que Animam a Terra - voz e criação na trajetória do espetáculo Rosário)]


Bafuda é Felícia de Castro. Ou Felícia de Castro é Bafuda. Graduada em Artes Cênicas na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Mestra pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Atua desde 1998 como atriz, palhaça, criadora e pesquisadora das potencialidades pessoais e dramaturgia do performer, ancorada no contato com as linhas de pesquisa em voz, exaustão, criação e palhaço, transmitidas pelo Lume Teatro de 1999 a 2005, em vivências com manifestações culturais brasileiras como a Capoeira Angola (BA), o Samba de Roda (BA), o Congado Mineiro, e o Reisado de Congo (CE), e no encontro com a dança Butoh através do mestre japonês Tadashi Endo, em 2006. 

Junto com outros palhaços de sua geração, é uma das precursoras da retomada da arte do palhaço em Salvador, desde que produziu o VIII Retiro de Clown e O Sentido Cômico do Corpo, e a partir daí realizou uma formação intensiva na área da palhaçaria. Em 1999, produziu junto com João Lima a vinda do Lume Teatro para Salvador. O grupo Lume realizou na cidade espetáculos e um curso de formação de palhaço que iniciou dezessete artistas baianos na arte do palhaço, tendo sido assim responsável pelo fortalecimento dessa arte na cidade, através dos palhaços que se desenvolveram e seguiram formando outros artistas na profissão de palhaço. Com João Lima, Demian Reis, Flavia Marco Antonio e João Porto Dias, foi fundadora, no ano 2000, do grupo de teatro Palhaços para Sempre. Em seus dez anos de trajetória, o grupo consolidou-se através da pesquisa da arte do palhaço e criou diversos espetáculos, entre eles BAFO DE AMOR (João Lima e Felícia de Castro), e JARDIM (prêmio duplo de melhor atriz para Felícia de Castro e Flavia Marco Antonio no XII Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga-CE em 2005). Felícia de Castro criou em Salvador, em 2008, juntamente com Demian reis, João Lima e Alexandre Casali, o primeiro curso técnico profissionalizante em palhaçaria da Bahia, em parceria com a Sitorne – estúdio de artes cênicas. Em 2009, realizou a 1ª Edição do Palhaças, bem vindas sois vós - Estudo Prático da Comicidade Feminina. Neste mesmo ano, participou como palestrante convidada, ao lado de Lelo Filho (A Bofetada - BA) e Pepe Nuñes (Cia Pé de Vento – Espanha/SC) do Pensamento Giratório, em debate intitulado “O Riso, a maneira mais inteligente de se tratar as coisas sérias”, atividade integrante do projeto Palco Giratório do SESC. Entre inúmeros alunos e alunas, em 2008, iniciou os dançarinos do Balé do Teatro Castro Alves (BTCA) na arte do palhaço, ocasião em que foi assistente de direção e co-criadora de espetáculo da mesma companhia, dirigido por Nehle Franke. Tem ministrado inúmeras formações/iniciações na arte do palhaço e cursos abordando os temas de suas pesquisas em diversas instituições.

04 outubro, 2012

Palhaças, Bem Vindas Sois Vós - reflexões sobre a comicidade feminina




artigo de Felícia de Castro originalmente publicado em Pã Revista de Arte e Cultura

http://parevista.org/porta-revistas/index.php/component/content/article/31-colaboradores/121-felicia-de-castro.html





Bafuda (Felícia de Castro) em A Missão (estudo para solo) fotos Eduardo Ravi - Cabaré Total (2008)
“Os primeiros seres cômicos, na origem da mitologia, eram mulheres.” Esta afirmação de Franca Rame origina uma série de questões. Observando o fenômeno da expressão do cômico em diversas culturas, tribos, e rituais ao longo da história constata-se que o riso é inerente ao ser humano. Esta reação que brota da barriga (o corpo inferior) serve para afirmar e subverter. O riso é uma das respostas fundamentais do ser humano confrontado com sua existência; é uma forma de suportá-la quando nenhuma explicação parece convincente (MINOIS, 2003, p 19).
Porém, quase sempre vimos a comicidade sendo veiculada pelo gênero masculino. Há uma série de motivos para este fato, basta olhar para o lugar relegado à mulher através dos tempos. Mas será que não há um humor tipicamente feminino e encarnado por mulheres? Isto não está explícito, entretanto histórias subterrâneas atestam que o papel da mulher como provocadora de riso esteve e está além do que vemos. O boom de palhaças que tem ocorrido nos últimos vinte anos é de se parar para pensar: O que determina esta tomada de cena da palhaçaria, pelas mulheres? A comicidade feita por mulheres é diferente da comicidade masculina? Que especificidades estão presentes no humor feminino?
Franca Rame é atriz, nascida na Itália no seio de uma tradicional linhagem da commedia dell'arte, e começou a atuar com oito dias de vida, ainda nos braços da mãe. Neste país, apesar do sucesso de sua carreira pessoal, ela ainda é lembrada como filha de Domenico Rame. Seu nome também é associado ao do escritor, ator mímico e palhaço Dario Fo, seu marido. No livro Manual Mínimo do Ator, escrito por ambos, ela trás um bem arquitetado capítulo, ilustrado com muitas histórias e exemplos calcados em sabedoria que remonta quatrocentos anos de teatro, no qual investiga, sem preconceitos e com crítica afiada, histórias paralelas à oficial, de mulheres que faziam rir.
Em plano geral, não era dado à mulher este poder de provocar o riso; era possível rir dela, mas não com ela, pois rir junto só era permitido aos iguais, coisa que homens e mulheres não eram; a mulher era vista como um homem incompleto e algo perigoso; contraditoriamente, ao mesmo tempo em que tinha parte com o diabo, era a santa virgem Maria imaculada, analisa Alice Viveiros de Castro no livro Elogio da Bobagem (2005, p. 220). 
No entanto, para além de todas as proibições e esquizofrenias, Franca Rame nos conta com orgulho que a tragédia, em sua forma arcaica, foi criada por mulheres, e num detalhe surpreendente, incluía na origem um elemento cômico:
 “O rito eleusínio, forma primária do espetáculo trágico, nasceu para celebrar um jogo bufo inventado por uma jovem, bastante espirituosa, com o intuito de livrar Deméter do desespero. [...] Baubo – no rito eleusínio, chamada de “a filha-da-terra” – despe-se e pinta no ventre dois grandes olhos, um nariz e, pouco acima uma boca... [...] esconde o rosto e os seios com raízes, simulando uma imensa cabeleira sobre o falso grande rosto. Balança as ancas, estufa e retrai o ventre, improvisa uma dança de caráter obsceno e canta versos picantes para a deusa. Deméter sorri... aliás, ri e diverte-se. A “filha-da-terra” consegue livrar a mãe-terra da tristeza. É o início do retorno da alegria e da vida na criação... no mundo dos homens.”  (FO, RAME, 2004, p. 359/360) 
Ressalta que muito parecida é a origem do teatro nô japonês, na qual, igualmente uma jovem dançando de forma provocante e engraçada, cantando versos divertidos e picantes, faz rir e voltar o sol, que, emburrado, havia se escondido em uma caverna. Desta maneira, é instigante pensar as mulheres, sempre tão apagadas nas histórias importantes, como porta-vozes de um riso santo-profano; e ainda vislumbrar que
“na base das duas mais antigas e importantes formas de tragédia conhecidas, encontramos a catarse do riso e do obsceno sexual, liberadores da luz e da harmonia. Dessa maneira, o ressentimento, o ódio e o medo, em todas as representações populares, são exorcizados e dissipados no jogo do grotesco.” (FO, RAME, 2004, p. 360/361) 
Fazer o cômico acontecer para sacramentar o local da festa era fundamental em todos os rituais iniciáticos, explica Franca Rame, sendo que o primeiro a entrar no lugar era um cômico, e antes uma cômica, e só quando eles provocavam o riso na assistência, a benção do local e da festa era concedida pelos deuses. (2004, p. 348) 
Entretanto sabemos que com o tempo a mulher deixou de ser protagonista nestes palcos. Ainda na Grécia antiga, principalmente a partir de veto imposto no século VII a.C., as mulheres liberadas e engraçadinhas passaram a atuar em tabernas, desempenhando o duplo papel de jogralesa e prostituta. Seguindo estes rastros subterrâneos da história, ela cita ainda a existência de comédias escritas por mulheres e interpretadas unicamente por mulheres, como as freiras de um convento bretão que encenavam comédias morais no século XV, e os fabliaux, contos da idade média francesa, que eram quase sempre representados por mulheres fabuladoras extremamente hábeis. (FO, RAME, 2004, p. 346) “[...] a maioria das histórias contadas por elas são mais divertidas e provocativas do que a dos homens, principalmente no plano do erotismo” (FO, RAME, 2004, p. 341). Franca Rame chama a atenção para a presença do elemento obsceno sempre próximo do cômico, como a arma eficaz para desmontar o sentimento de culpa, a vergonha e angústia do pecado, incutido pelo poder (2004, p. 342). Veremos adiante o quanto este é um ponto difícil e controverso no desenvolvimento das mulheres-palhaças.
A despeito da história oficial e de todo anúncio da incompatibilidade destas funções do humor com a natureza frágil da mulher, esta história continua sendo escrita e está cada vez mais em evidência. 
A presença feminina na palhaçaria é uma tradição recente. Alice Viveiros de Castro acredita que foi Ângela de Castro a primeira brasileira a se assumir palhaça; ela é hoje uma grande atuante neste movimento de mulheres-palhaças que vem se espalhando pelo mundo, sendo uma referência para outras grandes palhaças atuais como Sue Morrison e Laura Herts (2005, p. 221); a palhaça é um tipo cômico novo, que despontou no final do século XX, e cada vez vem conquistando mais espaço. No Brasil, temos “As Marias da Graça” como o primeiro grupo de palhaças mulheres do país. Criado em 1992, elas continuam atuando, e em 2005 organizaram no Brasil o 1° Festival Internacional de Comicidade Feminina, “Esse Monte de Mulher Palhaça” (CASTRO, 2005, p. 223).
 Uma das dificuldades no desenvolvimento desta atuação específica é que faltam referências, pois o arquétipo do palhaço é essencialmente masculino, e isto se reflete nas temáticas comumente exploradas, na forma de se movimentar, nas gags (acidentes cômicos); é todo um sistema de códigos que foi sendo lapidado através de gerações, e com base no ser masculino. No entanto, a arte da palhaçaria alcança uma esfera que transcende o nariz vermelho, figurino e maquiagem, e toca no centro a autenticidade e humanidade latente de cada um, que é exposta e dilatada em sua fragilidade, pureza e ridículo, levando ao riso. Sendo assim, tanto quanto são os diferentes seres que existem, é a diversidade de estilos, categorias, que marcam a amplitude deste fazer. A comicidade feita por mulheres deve ser refletida a partir desta esfera essencial.
A questão do sexo, mais que uma dificuldade, pode ser visto como um desafio criativo para as mulheres. Os palhaços homens exploram sem pudores o grotesco e a obscenidade, faz parte do repertório ancestral, enquanto as mulheres exploram mais a delicadeza e ainda temem cair na vulgaridade. Franca Rame expõe uma situação extrema, na qual, atrizes excessivamente preocupadas em não exagerar no erotismo anulam completamente o componente sexual. “Existem escolas para atrizes clowns em que o ensino de expressão corporal castra toda feminilidade” (2004, p. 344). Esta é a tendência de apagar as diferenças existentes entre homens e mulheres e, geralmente, masculinizar tudo; como o sexo dos anjos. Mas se a matéria prima do palhaço é sua própria humanidade, essas diferenças constituem potenciais para serem explorados. São, justamente, as particularidades de cada indivíduo que irão delinear o seu fazer. Em concordância, Alice Viveiros de Castro, atesta a complexidade da questão da sexualidade do palhaço, e arremata: “[...] o fato de o artista criador ser um homem ou uma mulher muda o personagem. [...] independente de ter sido criado por ele ou ela, cada palhaço será único” (2005, p. 222).
Numa época em que as palhaças se multiplicam e explodem em criatividade, é inevitável abordar questões de gênero e se debruçar em algumas especificidades. Se, em tempos primeiros, o homem fundamentalmente desbravava, caçava, reunia esforços para controlar a natureza desconhecida, e a mulher ocupava-se em compreender a natureza, lidando com seus próprios ciclos, estes movimentos distintos, por si só, já imprimem registros diferentes a cada tipo de corpo, o que pressupõe reações heterogêneas. É curioso observar elementos do grotesco no contexto abordado por Bakhtin, que consiste em “[...] aproximar-se da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento [...] degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre, a dos órgãos genitais, e portanto, com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto [...]” (1999, p. 19). Portanto, portadoras destes registros, podemos entrever a possibilidade de um acesso fácil das mulheres à expressão do grotesco, elemento importante da palhaçaria, pois há uma familiaridade anterior, um sentimento de paz com este estado inacabado do corpo, aberto e pleno. Ou como quer Bakhtin um “[...] corpo eternamente incompleto, eternamente criado e criador [...]” (1999, p. 23).
Neste movimento nascente, surgem para as palhaças questões sobre como lidar/explorar/expor o corpo, pois não é só um problema de liberação interna ou referencial; dependendo do lugar e da exposição, ainda corremos o risco de sermos atacadas no meio da rua. É uma medida delicada, que tende aos extremos, como observou Franca Rame; ela cita intérpretes excelentes, de excepcional físico, mas que se continham excessivamente, não se soltavam; mas, na sua opinião a maioria exagera, carrega nos efeitos (2004, p. 343). Como o tema básico do palhaço é a inadequação, pela qual o ridículo é exposto, o jogo pode ser subverter o lugar que geralmente nos colocam; o sexo masculino associado ao poder torna risível um palhaço apanhando, ou vestido de mulher. No caso da mulher, que é historicamente associada à fragilidade, é tão bonito vê-la encarnar o exagero desta delicadeza, quanto vislumbrar a descoberta de seu lado grotesco e agressivo. E o obsceno feminino pode aflorar de maneira ousada e criativa, como a palhaça Tupida , que toca os bicos dos seios para ficar mais rápida, provocando um efeito hilário e um crescente na cena.
Além dos temas universais que tocam a espécie humana, as palhaças brincam com seus imaginários; entre novas criações e recriações de clássicos elas aumentam a diversidade dos números, justamente por trazerem temáticas antes pouco exploradas na comicidade em geral; obsessão por limpeza, competição entre mulheres, ser gorda, ser magra, a beleza, a vaidade, os cosméticos, a solidão e falta de um marido, envelhecimento, e até o ridículo da maternidade, são alguns temas que são explorados pela irreverência do mundo cômico feminino. Mas não é necessário, por ser mulher, manter-se aprisionada a estes estereótipos. Poéticas universais como a morte são exploradas, como por exemplo, no espetáculo Spirulina em Spathodea, da palhaça Silvia Leblon. Outro exemplo é brincar com o universo masculino, como jogar futebol; inverter papéis sempre funciona. Não devemos esquecer, ainda, que o conceito de mulher, a forma como ela tem sido vista e como ela se vê, a mudança desta visão através dos tempos – afrodite, bacante, pagã, bruxa, virgem santa, fogueira, esposa adorada, puta, revolução, sutiã, hippie, intelectual, militante, artista, dona de casa, passarela, terceiro milênio - sempre estará como um tema onipresente. 
 O gênero humano, esta dimensão, é o que está em jogo na arte da palhaçaria, e as possibilidades são tão infinitas quanto os seres humanos; o número mais clássico se apresentará diferente a cada palhaço que encená-lo, por mais codificado que seja. A mulher, após muito lutar, teve sua humanidade reconsiderada; a mulher-palhaça está descobrindo sua comicidade e colocando seu jeito de fazer, construindo um saber específico, colorindo ainda mais as diferenças. Se ela é diferente, fará diferente. Sem nunca perder de vista que o objetivo é fazer rir, claro. Como provoca a bombástica Rame (2004, p. 342): “Destruir, fazendo rir: essa angústia sempre esteve presente no ato criador dos cômicos, especialmente no sexo feminino.” 
REFERÊNCIAS:
CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005
FO, Dario. RAME, Franca. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Ed. SENAC, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Huicitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

PALHAÇAS, BEM-VINDAS SOIS VÓS Estudo prático da Comicidade Feminina 2ª edição


Os primeiros seres cômicos, na origem da mitologia, eram mulheres.” Afirma Franca Rame que nos conta que a tragédia, em sua forma arcaica, foi criada por mulheres, e num detalhe surpreendente, incluía na origem um elemento cômico: “O rito eleusínio, forma primária do espetáculo trágico, nasceu para celebrar um jogo bufo inventado por uma jovem, bastante espirituosa, com o intuito de livrar Deméter do desespero. [...] Baubo – no rito eleusínio, chamada de “a filha-da-terra” – despe-se e pinta no ventre dois grandes olhos, um nariz e, pouco acima uma boca... [...] esconde o rosto e os seios com raízes, simulando uma imensa cabeleira sobre o falso grande rosto. Balança as ancas, estufa e retrai o ventre, improvisa uma dança de caráter obsceno e canta versos picantes para a deusa. Deméter sorri... aliás, ri e diverte-se. A “filha-da-terra” consegue livrar a mãe-terra da tristeza. É o início do retorno da alegria e da vida na criação... no mundo dos homens.* 

A presença feminina na palhaçaria é uma tradição recente, mas que tem crescido com uma força extraordinária e renovadora desta arte. Na sociedade moderna, quase sempre vimos a comicidade sendo veiculada pelo gênero masculino. Histórias subterrâneas como esta, atestam que o papel da mulher como provocadora de riso esteve e está além do que vemos. O que estaria pulsando hoje em tantas mulheres atraídas pela arte da palhaçaria? A comicidade feita por mulheres é diferente da comicidade masculina? Que especificidades estão presentes no humor feminino? Há um humor tipicamente feminino e encarnado por mulheres?

O curso Palhaças, bem vindas sois vós - Estudo Prático da Comicidade Feminina, em sua segunda edição, é um espaço de encontro e troca, para refletir e potencializar este fazer, estimular e aperfeiçoar descobertas, pois uma das dificuldades no desenvolvimento desta atuação específica é a escassez de referências, pela predominância do arquétipo do palhaço atrelado ao masculino.

A arte da palhaçaria alcança uma esfera que transcende o nariz vermelho, figurino e maquiagem, e toca o centro da humanidade de cada um. É esta humanidade exposta e dilatada, leva ao riso, à comoção, à transformação, à revolução. Sendo assim, tanto quanto são os diferentes seres que existem, é a diversidade de estilos que marcam a amplitude deste fazer. Se a matéria prima do palhaço é sua própria humanidade, essas diferenças constituem potenciais para serem explorados e lapidados. São, justamente, as particularidades de cada indivíduo que irão delinear o seu fazer. A comicidade feita por mulheres deve ser refletida a partir desta esfera essencial. A questão do sexo, mais que uma dificuldade, pode ser vista como um desafio criativo para as mulheres que se questionam como lidar/explorar/expor o corpo.  Além dos temas universais que tocam a espécie humana, as palhaças podem brincar com seus imaginários descobrindo sua comicidade, colocando seu jeito de fazer, e construindo um saber específico que as conduzirão a uma autonomia criativa.

O curso, ministrado pela artista Felícia de Castro, tem um caráter vivencial e será desenvolvido a partir de três pilares que vêm sendo aprofundado em sua pesquisa pessoal: sensibilização corpo-mente (semente do desejo: a flor da pele e do querer), ativação do imaginário através do corpo/voz (processos de encarnação), e geração de material criativo/criação de cenas (dança da união ou princípio da fusão/tradução). O estudo abordará a comicidade feminina e suas especificidades, a partir do estímulo de um caminho pessoal e da independência criativa. É um espaço para aprofundar e expandir o repertório de ações e reações, qualidades de energia, e a imaginação de cada palhaça. Combinando elementos da técnica do palhaço, do teatro físico, da pesquisa vocal, da dança Butoh e das brincadeiras, cantos e danças brasileiras - campos de pesquisa da condutora do trabalho -, os encontros enfocarão o aspecto Físico – Emocional, buscando a organicidade, a dilatação da presença cênica e a fluência dos impulsos, e o aspecto Criativo, envolvendo improvisação, geração de material, e composição.