04 outubro, 2012

Palhaças, Bem Vindas Sois Vós - reflexões sobre a comicidade feminina




artigo de Felícia de Castro originalmente publicado em Pã Revista de Arte e Cultura

http://parevista.org/porta-revistas/index.php/component/content/article/31-colaboradores/121-felicia-de-castro.html





Bafuda (Felícia de Castro) em A Missão (estudo para solo) fotos Eduardo Ravi - Cabaré Total (2008)
“Os primeiros seres cômicos, na origem da mitologia, eram mulheres.” Esta afirmação de Franca Rame origina uma série de questões. Observando o fenômeno da expressão do cômico em diversas culturas, tribos, e rituais ao longo da história constata-se que o riso é inerente ao ser humano. Esta reação que brota da barriga (o corpo inferior) serve para afirmar e subverter. O riso é uma das respostas fundamentais do ser humano confrontado com sua existência; é uma forma de suportá-la quando nenhuma explicação parece convincente (MINOIS, 2003, p 19).
Porém, quase sempre vimos a comicidade sendo veiculada pelo gênero masculino. Há uma série de motivos para este fato, basta olhar para o lugar relegado à mulher através dos tempos. Mas será que não há um humor tipicamente feminino e encarnado por mulheres? Isto não está explícito, entretanto histórias subterrâneas atestam que o papel da mulher como provocadora de riso esteve e está além do que vemos. O boom de palhaças que tem ocorrido nos últimos vinte anos é de se parar para pensar: O que determina esta tomada de cena da palhaçaria, pelas mulheres? A comicidade feita por mulheres é diferente da comicidade masculina? Que especificidades estão presentes no humor feminino?
Franca Rame é atriz, nascida na Itália no seio de uma tradicional linhagem da commedia dell'arte, e começou a atuar com oito dias de vida, ainda nos braços da mãe. Neste país, apesar do sucesso de sua carreira pessoal, ela ainda é lembrada como filha de Domenico Rame. Seu nome também é associado ao do escritor, ator mímico e palhaço Dario Fo, seu marido. No livro Manual Mínimo do Ator, escrito por ambos, ela trás um bem arquitetado capítulo, ilustrado com muitas histórias e exemplos calcados em sabedoria que remonta quatrocentos anos de teatro, no qual investiga, sem preconceitos e com crítica afiada, histórias paralelas à oficial, de mulheres que faziam rir.
Em plano geral, não era dado à mulher este poder de provocar o riso; era possível rir dela, mas não com ela, pois rir junto só era permitido aos iguais, coisa que homens e mulheres não eram; a mulher era vista como um homem incompleto e algo perigoso; contraditoriamente, ao mesmo tempo em que tinha parte com o diabo, era a santa virgem Maria imaculada, analisa Alice Viveiros de Castro no livro Elogio da Bobagem (2005, p. 220). 
No entanto, para além de todas as proibições e esquizofrenias, Franca Rame nos conta com orgulho que a tragédia, em sua forma arcaica, foi criada por mulheres, e num detalhe surpreendente, incluía na origem um elemento cômico:
 “O rito eleusínio, forma primária do espetáculo trágico, nasceu para celebrar um jogo bufo inventado por uma jovem, bastante espirituosa, com o intuito de livrar Deméter do desespero. [...] Baubo – no rito eleusínio, chamada de “a filha-da-terra” – despe-se e pinta no ventre dois grandes olhos, um nariz e, pouco acima uma boca... [...] esconde o rosto e os seios com raízes, simulando uma imensa cabeleira sobre o falso grande rosto. Balança as ancas, estufa e retrai o ventre, improvisa uma dança de caráter obsceno e canta versos picantes para a deusa. Deméter sorri... aliás, ri e diverte-se. A “filha-da-terra” consegue livrar a mãe-terra da tristeza. É o início do retorno da alegria e da vida na criação... no mundo dos homens.”  (FO, RAME, 2004, p. 359/360) 
Ressalta que muito parecida é a origem do teatro nô japonês, na qual, igualmente uma jovem dançando de forma provocante e engraçada, cantando versos divertidos e picantes, faz rir e voltar o sol, que, emburrado, havia se escondido em uma caverna. Desta maneira, é instigante pensar as mulheres, sempre tão apagadas nas histórias importantes, como porta-vozes de um riso santo-profano; e ainda vislumbrar que
“na base das duas mais antigas e importantes formas de tragédia conhecidas, encontramos a catarse do riso e do obsceno sexual, liberadores da luz e da harmonia. Dessa maneira, o ressentimento, o ódio e o medo, em todas as representações populares, são exorcizados e dissipados no jogo do grotesco.” (FO, RAME, 2004, p. 360/361) 
Fazer o cômico acontecer para sacramentar o local da festa era fundamental em todos os rituais iniciáticos, explica Franca Rame, sendo que o primeiro a entrar no lugar era um cômico, e antes uma cômica, e só quando eles provocavam o riso na assistência, a benção do local e da festa era concedida pelos deuses. (2004, p. 348) 
Entretanto sabemos que com o tempo a mulher deixou de ser protagonista nestes palcos. Ainda na Grécia antiga, principalmente a partir de veto imposto no século VII a.C., as mulheres liberadas e engraçadinhas passaram a atuar em tabernas, desempenhando o duplo papel de jogralesa e prostituta. Seguindo estes rastros subterrâneos da história, ela cita ainda a existência de comédias escritas por mulheres e interpretadas unicamente por mulheres, como as freiras de um convento bretão que encenavam comédias morais no século XV, e os fabliaux, contos da idade média francesa, que eram quase sempre representados por mulheres fabuladoras extremamente hábeis. (FO, RAME, 2004, p. 346) “[...] a maioria das histórias contadas por elas são mais divertidas e provocativas do que a dos homens, principalmente no plano do erotismo” (FO, RAME, 2004, p. 341). Franca Rame chama a atenção para a presença do elemento obsceno sempre próximo do cômico, como a arma eficaz para desmontar o sentimento de culpa, a vergonha e angústia do pecado, incutido pelo poder (2004, p. 342). Veremos adiante o quanto este é um ponto difícil e controverso no desenvolvimento das mulheres-palhaças.
A despeito da história oficial e de todo anúncio da incompatibilidade destas funções do humor com a natureza frágil da mulher, esta história continua sendo escrita e está cada vez mais em evidência. 
A presença feminina na palhaçaria é uma tradição recente. Alice Viveiros de Castro acredita que foi Ângela de Castro a primeira brasileira a se assumir palhaça; ela é hoje uma grande atuante neste movimento de mulheres-palhaças que vem se espalhando pelo mundo, sendo uma referência para outras grandes palhaças atuais como Sue Morrison e Laura Herts (2005, p. 221); a palhaça é um tipo cômico novo, que despontou no final do século XX, e cada vez vem conquistando mais espaço. No Brasil, temos “As Marias da Graça” como o primeiro grupo de palhaças mulheres do país. Criado em 1992, elas continuam atuando, e em 2005 organizaram no Brasil o 1° Festival Internacional de Comicidade Feminina, “Esse Monte de Mulher Palhaça” (CASTRO, 2005, p. 223).
 Uma das dificuldades no desenvolvimento desta atuação específica é que faltam referências, pois o arquétipo do palhaço é essencialmente masculino, e isto se reflete nas temáticas comumente exploradas, na forma de se movimentar, nas gags (acidentes cômicos); é todo um sistema de códigos que foi sendo lapidado através de gerações, e com base no ser masculino. No entanto, a arte da palhaçaria alcança uma esfera que transcende o nariz vermelho, figurino e maquiagem, e toca no centro a autenticidade e humanidade latente de cada um, que é exposta e dilatada em sua fragilidade, pureza e ridículo, levando ao riso. Sendo assim, tanto quanto são os diferentes seres que existem, é a diversidade de estilos, categorias, que marcam a amplitude deste fazer. A comicidade feita por mulheres deve ser refletida a partir desta esfera essencial.
A questão do sexo, mais que uma dificuldade, pode ser visto como um desafio criativo para as mulheres. Os palhaços homens exploram sem pudores o grotesco e a obscenidade, faz parte do repertório ancestral, enquanto as mulheres exploram mais a delicadeza e ainda temem cair na vulgaridade. Franca Rame expõe uma situação extrema, na qual, atrizes excessivamente preocupadas em não exagerar no erotismo anulam completamente o componente sexual. “Existem escolas para atrizes clowns em que o ensino de expressão corporal castra toda feminilidade” (2004, p. 344). Esta é a tendência de apagar as diferenças existentes entre homens e mulheres e, geralmente, masculinizar tudo; como o sexo dos anjos. Mas se a matéria prima do palhaço é sua própria humanidade, essas diferenças constituem potenciais para serem explorados. São, justamente, as particularidades de cada indivíduo que irão delinear o seu fazer. Em concordância, Alice Viveiros de Castro, atesta a complexidade da questão da sexualidade do palhaço, e arremata: “[...] o fato de o artista criador ser um homem ou uma mulher muda o personagem. [...] independente de ter sido criado por ele ou ela, cada palhaço será único” (2005, p. 222).
Numa época em que as palhaças se multiplicam e explodem em criatividade, é inevitável abordar questões de gênero e se debruçar em algumas especificidades. Se, em tempos primeiros, o homem fundamentalmente desbravava, caçava, reunia esforços para controlar a natureza desconhecida, e a mulher ocupava-se em compreender a natureza, lidando com seus próprios ciclos, estes movimentos distintos, por si só, já imprimem registros diferentes a cada tipo de corpo, o que pressupõe reações heterogêneas. É curioso observar elementos do grotesco no contexto abordado por Bakhtin, que consiste em “[...] aproximar-se da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento [...] degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre, a dos órgãos genitais, e portanto, com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto [...]” (1999, p. 19). Portanto, portadoras destes registros, podemos entrever a possibilidade de um acesso fácil das mulheres à expressão do grotesco, elemento importante da palhaçaria, pois há uma familiaridade anterior, um sentimento de paz com este estado inacabado do corpo, aberto e pleno. Ou como quer Bakhtin um “[...] corpo eternamente incompleto, eternamente criado e criador [...]” (1999, p. 23).
Neste movimento nascente, surgem para as palhaças questões sobre como lidar/explorar/expor o corpo, pois não é só um problema de liberação interna ou referencial; dependendo do lugar e da exposição, ainda corremos o risco de sermos atacadas no meio da rua. É uma medida delicada, que tende aos extremos, como observou Franca Rame; ela cita intérpretes excelentes, de excepcional físico, mas que se continham excessivamente, não se soltavam; mas, na sua opinião a maioria exagera, carrega nos efeitos (2004, p. 343). Como o tema básico do palhaço é a inadequação, pela qual o ridículo é exposto, o jogo pode ser subverter o lugar que geralmente nos colocam; o sexo masculino associado ao poder torna risível um palhaço apanhando, ou vestido de mulher. No caso da mulher, que é historicamente associada à fragilidade, é tão bonito vê-la encarnar o exagero desta delicadeza, quanto vislumbrar a descoberta de seu lado grotesco e agressivo. E o obsceno feminino pode aflorar de maneira ousada e criativa, como a palhaça Tupida , que toca os bicos dos seios para ficar mais rápida, provocando um efeito hilário e um crescente na cena.
Além dos temas universais que tocam a espécie humana, as palhaças brincam com seus imaginários; entre novas criações e recriações de clássicos elas aumentam a diversidade dos números, justamente por trazerem temáticas antes pouco exploradas na comicidade em geral; obsessão por limpeza, competição entre mulheres, ser gorda, ser magra, a beleza, a vaidade, os cosméticos, a solidão e falta de um marido, envelhecimento, e até o ridículo da maternidade, são alguns temas que são explorados pela irreverência do mundo cômico feminino. Mas não é necessário, por ser mulher, manter-se aprisionada a estes estereótipos. Poéticas universais como a morte são exploradas, como por exemplo, no espetáculo Spirulina em Spathodea, da palhaça Silvia Leblon. Outro exemplo é brincar com o universo masculino, como jogar futebol; inverter papéis sempre funciona. Não devemos esquecer, ainda, que o conceito de mulher, a forma como ela tem sido vista e como ela se vê, a mudança desta visão através dos tempos – afrodite, bacante, pagã, bruxa, virgem santa, fogueira, esposa adorada, puta, revolução, sutiã, hippie, intelectual, militante, artista, dona de casa, passarela, terceiro milênio - sempre estará como um tema onipresente. 
 O gênero humano, esta dimensão, é o que está em jogo na arte da palhaçaria, e as possibilidades são tão infinitas quanto os seres humanos; o número mais clássico se apresentará diferente a cada palhaço que encená-lo, por mais codificado que seja. A mulher, após muito lutar, teve sua humanidade reconsiderada; a mulher-palhaça está descobrindo sua comicidade e colocando seu jeito de fazer, construindo um saber específico, colorindo ainda mais as diferenças. Se ela é diferente, fará diferente. Sem nunca perder de vista que o objetivo é fazer rir, claro. Como provoca a bombástica Rame (2004, p. 342): “Destruir, fazendo rir: essa angústia sempre esteve presente no ato criador dos cômicos, especialmente no sexo feminino.” 
REFERÊNCIAS:
CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005
FO, Dario. RAME, Franca. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Ed. SENAC, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Huicitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

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